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  • Foto do escritorSandra Allegreti Giovannini

A sexualidade para além do corpo biológico

Na medicina, as relações entre aspectos biológicos e psicológicos são normalmente desconsideradas, fazendo parecer que toda condição real ou potencial de sofrimento possa ser resolvido com intervenções medicamentosas ou cirúrgicas. Quando se trata de aspectos referentes à sexualidade, a importância de se examinar possibilidades e consequências se faz ainda maior.


O nosso assunto aqui é sobre a importância de nós, profissionais da saúde, olharmos as intercorrências sexuais experienciadas pelo indivíduo na infância, tanto na perspectiva médica quanto na perspectiva psicológica sob a lente da Gestalt terapia, afim de sermos capazes de enxergar a pessoa que nela habitou a experiência.


O Gestaltterapeuta atua na compreensão de que, ainda que a medicina defina protocolos de condições sintomáticas, clínicas e laboratoriais para a definição de um determinado diagnóstico patológico e/ou alterações físicas significativas, mesmo que um grupo de pessoas receba um diagnóstico de mesma nomenclatura, a experiência organísmica será singular. Compreender este conceito nos permite maior aproximação da experiência do sujeito, o fenômeno a ser compreendido.


Sinéquia - condição biológica e normal

Vamos conversar sobre uma condição relativamente comum entre crianças do sexo feminino, onde cerca de 2% a 5% destas poderão apresentar uma condição conhecida por sinéquia dos pequenos lábios vaginais mais conhecida como vagina fechada. Essa condição trata se de uma aderência dos pequenos lábios da vagina que causa a obstrução do canal vaginal e que, segundo a literatura médica, sua prevalência ocorre entre crianças do sexo feminino antes da puberdade, sobretudo entre os 03 meses e os 06 anos. A extensão da sinéquia dos pequenos lábios vaginais pode variar muito, desde uma fusão quase integral deles até outras, em que se verifica fusão de 30 a 50%. Em todos os casos permanece sempre um pequeno orifício que permite a passagem da urina. A condição geralmente é assintomática, podendo facilitar a ocorrência de vulvovaginites, irritação local, perda de urina e raramente infecções urinárias. Quase sempre só é detectada por uma observação de rotina durante uma consulta médica ou durante a higiene da criança, pelos próprios pais.


Não existe um consenso quanto à conduta médica a ser adotada, alguns autores chegam a desaconselhar qualquer tratamento enquanto outros aconselham a manter apenas um tratamento conservador, com a aplicação de cremes locais, uma vez que o problema habitualmente se resolve espontaneamente durante a puberdade.


Quando existe inflamação local da mucosa e/ou da pele da vulva, tem sido proposta a aplicação tópica de corticoides e após a abertura da sinéquia pode ser usada vaselina líquida no local, durante alguns dias, para evitar uma nova aderência dos pequenos lábios. Caso não haja uma solução espontânea recomendasse a cirurgia.


acompanhei em consultório algumas mulheres de diversas idades que viveram essa condição na infância, com experiências bem variadas e algumas trazendo “marcas” para a experiência sexual adulta

A experiência para além do corpo

Para a medicina esta condição não acarreta implicações na vida futura das meninas, não afetando o desenvolvimento sexual ou a fertilidade, contudo, já acompanhei em consultório algumas mulheres de diversas idades que viveram essa condição na infância, com experiências bem variadas e algumas trazendo “marcas” para a experiência sexual adulta especialmente as que passaram por uma solução cirúrgica.


Certamente que a medicina evoluiu sobremaneira, o que significa dizer que talvez em algumas das circunstância das pacientes, a cirurgia teria sido uma solução precipitada, baseando se nas orientações atuais sobre a conduta médica de aguardar espontaneamente o descolamento dos pequenos lábios.


Voltando para as pacientes, vou me ater a uma delas em específico: Mulher heterossexual, 30 anos com o relato de dificuldades de penetração e anorgasmia na relação sexual. Através de uma anamnese detalhada sobre a sua condição médica encontramos, entre outras ocorrências, a sinéquia com solução cirúrgica na infância.


Foi um acompanhamento longo, delicado onde vasculhamos lembranças, relatos e o uso de experimentos de caráter fenomenológico e assim fomos compreendendo as “marcas” e liberando as “travas” de sua experiência vivida na infância.


Passei então a refletir que a psicologia há muito tempo discute a importância de observar a idade mais adequada da criança do sexo masculino que necessita passar pelo procedimento cirúrgico da fimose, que se caracteriza pela dificuldade ou impossibilidade de expor adequadamente a glande — a cabeça do pênis — devido ao excesso de pele (prepúcio) que cobre a região. Praticamente todos os meninos nascem com esta condição, porém, na maioria deles, a fimose desaparece com o tempo. Em ambos os casos, seja de solução cirúrgica ou não, a medicina atesta resultados que não trarão consequências fisiológicas para os pacientes que vivenciam condições desta natureza.


"compreendo a importância de se considerar os mesmos cuidados psicológicos que se utilizam para as crianças do sexo masculino, também para as intervenções sexuais nas crianças do sexo feminino"

Como falamos anteriormente, o mesmo pode não acontecer com a experiência psicológica e, por esta razão, compreendo a importância de se considerar os mesmos cuidados psicológicos que se utilizam para as crianças do sexo masculino, também para as intervenções sexuais nas crianças do sexo feminino.


Cuidados a serem adotados pelo psicoterapeuta

Segue algumas reflexões que considero imprescindíveis para o profissional que vai acompanhar uma paciente que já passou, está passando ou vai passar por experiências que envolvam seu corpo e sua sexualidade.


O profissional psicólogo/a necessita construir um espaço para diálogo (adequando a linguagem da criança, quando for o caso) e expressão, considerando os seguintes aspectos:

  1. Incentivar e acolher expressões emocionais de qualquer natureza relativas a experiencia: medo, vergonha, impotência, raiva etc.

  2. O que ela sabe sobre o que acontece ou aconteceu? Como foi descoberto, quem descobriu, como é ou eram feitas as consultas, o que será ou o que foi feito, quem vai cuidar ou cuidou dela etc.

  3. Estudar sobre o assunto e caso possível, conversar com o médico responsável sobre o que será feito ou foi feito durante as consultas e/ou procedimento cirúrgico

  4. Dialogar abertamente sobre assuntos tabus. Por ex.: - O que está acontecendo ou aconteceu com o seu corpo “naquele lugar onde ninguém pode / podia pôr a mão”, na maioria das vezes nem ela mesma.

  5. Auxiliá-la na compreensão da importância de fazer ou ter feito o tratamento para a melhoria da sua qualidade de vida sexual futura.

  6. Quando se tratar de crianças, compreender empaticamente as limitações dos pais/cuidadores em dialogar sobre os assuntos que envolvam a sexualidade e orientá-los a interagir naturalmente com a criança/adolescente que está passando pela experiência.


É importante compreender que a criança possa imaginar que o procedimento vá lesionar ou lesionou o hímen e então desencadear vários conflitos sobre a construção e o significado desta ocorrência.


E este é um assunto que podemos conversar num próximo momento, pois compreendo que a vastidão de ocorrências consideradas meramente biológicas, mas com efeitos psíquicos importantes, ainda precisam ser exaustivamente examinadas, afim de se prevenir não apenas problemas físicos, mas problemas de relacionamento e de adoecimento psicológico tanto de homens, quanto de mulheres.

 

Sandra Allegretti Giovannini é Psicóloga (CRP 11/1118) pela Universidade Metodista de São Paulo. Psicoterapeuta, Gestalt terapeuta, Especialista em doenças reumáticas e autoimune, Professora do Curso de Especialização Clínica em Gestalt-terapia do IGC - Instituto Gestalt do Ceará, facilitadora de grupos e supervisora clínica. Tem formação em Dinâmica Energética do Psiquismo, Resgate Ancestral e Reconfiguração do Campo Familiar.

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