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  • Foto do escritorRachel Ramos Borges

O olhar da gestalt-terapia frente ao fenômeno da autossabotagem

Muitas pessoas querem realizar uma série de atividades que ajudem a satisfazer suas necessidades mais genuínas, mas no meio do caminho ou antes mesmo de inicia-lo, acabam por interromperem o processo, de forma consciente ou não, perdendo completamente o foco daquilo que era mais importante para si. Esse é o fenômeno da autossabotagem, um modo de se impedir de realizar ou viver o que é mais importante para si, em determinado momento. Você já passou por esse tipo de situação? Sabe como o gestalt-terapeuta entende esse estranho modo de empobrecer a própria existência?


Existem muitos caminhos. Escolha um que faça sentido para você e, se der, vá até o fim!

Para entender melhor esse processo, precisamos olhar brevemente o contexto geral em que estamos. Vivemos em uma ampla sociedade contemporânea repleta de atividades diversas que nos engloba a ponto de nos percebermos envoltos por um ritmo desenfreado, exorbitante e exaustivo que intervém cotidianamente nos afazeres, repercutindo inclusive de forma psicossomática, na medida em que o corpo responde com frequentes sintomas, como a ansiedade, por exemplo.


Esta condição recorda um estudioso contemporâneo de nome Han (2017), que se fundamenta nos estudos de Hegel (2003) ao falar sobre a relação Senhor- Escravo, na qual nos encontramos inseridos atualmente.


estamos a viver como se fizéssemos parte de uma “corrida”, em uma exacerbada busca por sermos melhores que o outro. Porém, essa busca constante, repercute em uma vida de escravo, refletida em nossas ações para com nós mesmos

A nossa falsa liberdade

Vivemos a acreditar que possuímos uma falsa liberdade perpassada pela ideia de que escolhemos onde, como e quando trabalhamos. Mas não percebemos que, na sociedade do desempenho, como Han denomina, estamos a viver como se fizéssemos parte de uma “corrida”, em uma exacerbada busca por sermos melhores que o outro. Porém, essa busca constante, repercute em uma vida de escravo, refletida em nossas ações para com nós mesmos.


Muitas vezes este mero viver, perpassado por uma constante busca em superar ao outro, faz com que o sujeito se perceba em um local solitário e triste, uma vez que percebe ser “preciso” demonstrar-se como um ser autossuficiente.


Refletir sobre esta sensação de solidão que engloba a sociedade capitalista, remete ao que Alvim, Bomben e Carvalho (2010, p.186) relatam ao lembrar que:


Num cenário competitivo e refratário às diferenças, não há acolhimento, não há espaço público em qualquer grau para a manifestação de fraquezas, de impossibilidades, tampouco de impotência, o que contribui para a geração nas pessoas de um movimento de isolamento e contenção que se reflete no corpo: adoecimento e sofrimento.


Muitas vezes nossas restrições são invisíveis

Isto nos remete a uma sociedade cada vez mais adoecida devido a constante busca de conquistar o lugar de lugar de autossuficiência, de independência. É importante então recordar o quanto o consumo perpassa as relações, pois, aquele que apresenta o “melhor” perante a sociedade, é aquele que “conquistou sucesso”.


Convém então refletir: será que estamos a olhar para nós mesmos? Para nossas dores, nossas inquietudes, nossas impermanências, ou vivemos uma constante luta em busca de produtividade? Esta reflexão lembra a concepção de liberdade trazida por Sartre, onde o homem


Está condenado à liberdade, vivida como aparente paradoxo: o homem pode ser qualquer coisa, pois a liberdade é a sua condição; no entanto, pode ser apenas de determinada forma, em cada situação, abdicando de outras possibilidades de ser. Assim, sua liberdade é uma condição ontológica, pela qual é responsável (BORIS, 2018, p. 3).


desde a infância estamos a acumular lixos emocionais, possibilitando o surgimento de sintomas físicos e emocionais que condizem com situações não resolvidas e, de certo modo, “engolidas”

Dentre as contingencias existentes, cabe ao homem a liberdade de escolher qual delas irá seguir, porém, possuindo a certeza de que não possui controle sobre resultado de suas escolhas. Esta liberdade repercute de uma forma tão angustiante, a ponto de perceber ser “melhor” sustentar estas escolhas em condições externas como a cultura, o tempo, entre outros do que assumir o peso do resultado de suas escolhas agindo, desta forma, de má-fé.

Como Boris (2018, p.5) relembra, “A má-fé, portanto, é entendida como uma espécie de mentira, em que o próprio homem é o enganador e o enganado, pois, voltando-se para si mesmo, engana e é enganado”.


Destarte, o sujeito com o comportamento autossabotador, encontra-se a mentir para si mesmo, em um constante movimento de má-fé. Torna-se mais “fácil” continuar a caminhar em um terreno já conhecido do que adentrar em algo desconhecido, podendo repercutir em fracassos e perdas, que o façam ser visto como insuficiente aos olhos da sociedade.

O neurótico, envolvido pelo medo da dor e da frustração, encontra-se envolto pela falta de percepção do que seriam suas necessidades e emoções. Desta maneira, a todo o momento, interrompe o processo de satisfação das próprias necessidades, impossibilitando que abrace novas oportunidades, o que o torna um sujeito constantemente insatisfeito, enfatiza Georges (2016).


Assim sendo, como Perls (1977) salienta, desde a infância estamos a acumular lixos emocionais, possibilitando o surgimento de sintomas físicos e emocionais que condizem com situações não resolvidas e, de certo modo, “engolidas”. Cristalizamos ao nos apegarmos ao lixo. O medo ou o querer evitar conflitos nos faz engolirmos aquilo que não conseguimos verbalizar e resolver.


A autossabotagem e a retroflexão

Dentro dessa discussão, surge então o questionamento: quem se autossabota, quer evitar o encontro com suas reais necessidades? O medo do incerto surge a ponto de mascarar toda e qualquer percepção do que seria necessidade naquele momento. Mesmo que o insatisfaça, a escolha por continuar no conhecido prevalece a ponto de agir de maneira à retrofletir suas ações.


Portanto, é imprescindível frisar Pinto (2015), ao discorrer sobre estado de personalidade onde recorda que em um mecanismo retroflexivo, o sujeito encontra-se a viver uma vida metódica, com poucas ousadias. Constantemente, está a viver em um autocontrole extremo envolvido por uma luta interna entre entregar-se as situações ou viver uma constante atenção aos seus próprios atos.


Nem sempre é onde ou com quem: é a forma!

Esta compreensão desperta a concepção na qual, diante da impossibilidade de retorno hostil ou afetivo por intermédio dos seus relacionamentos, o sujeito que retroflete se afasta de toda e qualquer compreensão autocrítica, bloqueando o contato com o mundo, retornando para si mesmo aquilo que gostaria de desenvolver nesta relação, como destaca Polster e Polster (2001).


Dentro desta discussão, surge o entendimento de que o sujeito que se autossabota, diante do medo do incerto, mascara toda percepção de suas reais necessidades mesmo que isso o insatisfaça, de maneira a retrofletir suas ações, vivendo uma vida metódica, com autocontrole extremo. A todo o momento, uma luta interna encontra-se presente entre entregar-se totalmente as situações ou viver diante de uma atenção frequente aos seus próprios atos.


A conclusão dessa breve reflexão é que o sujeito com frequente comportamento autossabotador, como falado no início desse texto, possivelmente encontra-se cristalizado no mecanismo neurótico da retroflexão, perdendo a capacidade de fornecer novas respostas ao mundo, de forma que experimenta sempre o “mais do mesmo” sem nenhuma criatividade ou mesmo realização de coisas que sejam diferentes daquelas que o mundo lhe impõe. Faz-se urgente que repensemos esse modo de ser.


Referências

ALVIM, Mônica Botelho; BOMBEN, Emmanuela; CARVALHO, Natália. Pode deixar que eu resolvo: retroflexão e contemporaneidade. Revista da Abordagem Gestáltica, Goiânia, v. 16, n. 2, p. 183-188, jul./dez. 2010. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3577/357735614008.pdf. Acesso em: 20 Out. 2020.


BORIS, Georges Daniel Janja Bloc. Angústia e má-fé: o manejo da evitação de contato na gestalt-terapia. In: DUTRA, Elza (org.). O Desassossego Humano na Contemporaneidade. Rio de Janeiro: Viaverita, 2018. 370p.


GEORGES, Andréia. Descarte do lixo emocional: uma visão da gestalt-terapia para sustentabilidade afetiva. 2016. 15f. Monografia (Especialização) – Curso de Pós-Graduação em Gestalt-Terapia, Fundação de Ensino Superior e Formação Integral – Faef, Garça – SP, 2016. Disponível em: http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/dbgyBH5ntsMxhv2_2017-10-17-21-43-10.pdf. Acesso em: 20 Out. 2020.


HAN, Byung-Chul. Agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2017.96p.


HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2003. 63p.


PERLS, Fritz. Isto é Gestalt. São Paulo: Summus, 1977.


PINTO, Ênio Brito. Elementos para uma compreensão diagnóstica em psicoterapia: o ciclo de contato e os modos de ser. São Paulo: Summus, 2015.


POLSTER, Erving; POLSTER, Miriam. Gestalt-terapia integrada. São Paulo: Summus, 2001.

 

Rachel Ramos Borges - CRP 11/13033 - Psicóloga com graduação em Psicologia pela Universidade de Fortaleza- UNIFOR. No momento, atua na área clínica. É aluna do Curso de Especialização Clínica em Gestalt-terapia do IGC, da Formação em Plantão Psicológico pelo Instituto Fratelli de Fortaleza e da Formação em Gestalt- terapia com crianças e adolescentes pelo Centro Gestáltico de Fortaleza.

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