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  • Foto do escritorRafael Cidrão Campos

O risco social da psicoterapia

Neste texto buscaremos refletir sobre o possível risco da psicoterapia para as relações interpessoais e para a sociedade como um todo.


Partiremos da frase de Goodman de que “a psicoterapia eficiente é inevitavelmente um risco social” (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997, p.144). Para compreendermos esta frase precisaremos resgatar brevemente os conceitos de agressão, autorregulação organísmica e campo organismo ambiente.


Viver é um risco.
Viver é um risco Mas não correr riscos não permite que a vida se nos dê em sua inteireza.

Fritz Perls, já em sua obra Ego, Fome e Agressão (1942/2007), apresenta um novo olhar sobre a agressão, reconhecendo-a como uma energia de destruição daquilo com o que entramos em contato e necessária para um bom contato. Perls apresenta esta agressão comparando-a com a mastigação. No ato de mastigar, o organismo desestrutura o alimento, o destrói e isso é necessário para uma boa assimilação deste alimento. De outro modo o organismo o engoliria por inteiro, o que poderia lhe causar uma indigestão ou dificultar o processo de nutrição. Importante assinalar que no ato de alimentação está implicada uma relação entre organismo e ambiente, orientada pela necessidade do organismo e pela disponibilidade do ambiente em dar conta da satisfação dessa necessidade organísmica.


Se o organismo não agride estes alimentos psicológicos, por meio de uma atividade de criticar e refletir sobre o que lhe é imposto, fará isso ao custo de engolir por inteiro algo que talvez não faça sentido para a sua identidade e espontaneidade

A agressão e a psicologia

Tentaremos agora compreender a agressão em um contexto mais explicitamente psicológico. Assim como na alimentação podemos perceber a relação entre organismo e ambiente, podemos também reconhecer esta relação nas interações interpessoais. Ao longo da vida de um indivíduo inserido em uma cultura, muitas são as crenças, ideias e valores que lhe são oferecidos. Se o organismo não agride estes alimentos psicológicos, por meio de uma atividade de criticar e refletir sobre o que lhe é imposto, fará isso ao custo de engolir por inteiro algo que talvez não faça sentido para a sua identidade e espontaneidade. Este ato de engolir por inteiro sem criticar é a descrição do conceito de introjeção, que podemos ver em Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997).


A experiência de inibição da agressividade pode ocorrer em um campo em que a sua expressão seria perigosa para o organismo ou para o ambiente com que se relaciona. Ao longo da vida em sociedade, como dissemos, muitas crenças estarão disponíveis para a introjeção ou assimilação e muitas pessoas introjetam estes valores para evitar um conflito ou tentar viver sem riscos.



A vida e seu sentido está em qualquer lugar

Para ilustrar o que estamos descrevendo, imaginemos a situação em que uma pessoa se sente frustrada e com raiva por não estar sendo respeitada em uma determinada relação familiar, mas imagina que expressar este sentimento poderia ser desastroso e lhe custar o afeto da família. Possivelmente esta pessoa cresceu aprendendo que sentir raiva é errado e muito mais expressar esta raiva. Também é possível que tenha aprendido valores como a submissão e a resignação diante das frustrações. A pessoa que estamos descrevendo têm inibido a expressão de seus sentimentos como uma forma de se ajustar neste ambiente hostil à sua espontaneidade.


Uma pessoa que se encontra em um campo difícil, em que precisa estar continuamente inibindo sua habilidade de se relacionar com o meio de acordo com suas necessidades mais importantes, ou seja, uma pessoa que precisa inibir sua autorregulação organísmica deixará de cuidar de demandas necessárias a um desenvolvimento saudável. Importante esclarecer que não estamos advogando em nome de uma impulsividade que desconsidera o todo em que o organismo está inserido.


Em alguns cenários a inibição da autorregulação pode paradoxalmente, ser a melhor forma do organismo sobreviver. Além disso, em alguns casos a inibição é necessária. Entretanto, como afirmam os fundadores da Gestalt-terapia: “A inibição é, então, necessária, mas lembremo-nos de que à medida que concordamos com situações nas quais a auto-regulação raramente opera, temos de nos contentar em viver com energia e radiância reduzidas.” (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997, p. 85).


A agressão e a psicoterapia

Agora imaginemos que a pessoa que descrevemos inicie um processo psicoterápico. Na terapia ela será convidada a dar-se conta das formas como se inibe e ao sentido desta inibição, como se proteger e garantir o afeto da família. A psicoterapia também buscará convidar a pessoa em questão a questionar os valores que têm engolido sem se dar conta e a critica-los, verificando o que realmente faz sentido para sua vida e sua identidade.


Durante o processo psicoterápico o Gestalt-terapeuta também buscará contribuir para a construção de um ambiente de acolhimento, em que a pessoa em terapia se sinta à vontade para ser quem é, reconhecendo seus próprios sentimentos e necessidades. Na medida em que o cliente vai se sentindo confiante de ser quem é diante de outra pessoa, no caso, o terapeuta, se torna mais fácil o desenvolvimento da própria capacidade de se reconhecer como uma pessoa digna de ser respeitada e acolhida, inclusive na expressão de seus sentimentos. O Gestalt-terapeuta buscará facilitar que o ciente se sinta confiante para expressar inclusive suas frustrações e raiva em relação ao terapeuta.


Esta nova relação estabelecida entre terapeuta e cliente possivelmente fortalecerá o cliente na sua habilidade de se colocar de forma diferente nas relações em que vive com outras pessoas, não mais aceitando valores que lhe são prejudiciais, ou se privando de ser quem é nas suas interações pessoais por receio de perdê-las.


Uma pessoa assim fortalecida oferece um risco para os grupos a que pertence e à sociedade como um todo. O grupo familiar que tem como valor a submissão e proíbe a expressão da raiva pode se assustar e até desgostar dessa pessoa que não mais compactua com os mesmos valores ou que agora se permite expressar sentimentos, ainda que agora esta pessoa seja mais autêntica e precisamente por isso.

Possivelmente esta pessoa cresceu aprendendo que sentir raiva é errado e muito mais expressar esta raiva. Também é possível que tenha aprendido valores como a submissão e a resignação diante das frustrações.

Entendemos que a situação hipotética que criamos ilustra situações reais no contexto social em que vivemos. Nossa cultura está permeada de regras e formas de ser nas quais devemos nos tornar, ainda que isso custe nosso crescimento e o hábito de inibir nossa espontaneidade. A psicoterapia, na medida em que procura promover o resgate da autenticidade e questiona os imperativos sociais que constrangem a espontaneidade, se apresenta como um risco para as relações sociais como estão hoje.


Não precisamos ajustar os outros à sociedade

Entretanto, embora a psicoterapia gestáltica não se caracterize como uma terapia que busca ajustar o indivíduo a sociedade, também não quer dizer que ela é necessariamente um obstáculo para a vida em sociedade e que produza sujeitos individualistas. Afinal, uma vez que compreendemos que organismo e ambiente formam um todo, não podemos considerar a expressão da identidade de um organismo de forma isolada, mas somente em relação com o ambiente. Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) apresentam esta relação entre organismo e ambiente de forma muito clara ao nos recordarem que tudo que somos, o somos em relação ao ambiente com o qual entramos em contato.


Assim, “falamos do organismo que se põe em contato com o ambiente, mas o contato é que é a realidade mais simples e primeira.” (p.41). Para ilustrar esta compreensão, os fundadores da Gestalt-terapia nos lembram, por exemplo, que não existe respiração sem o ar, ou caminhar sem chão e gravidade (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997). Da mesma maneira, não há amor sem alguém amado ou desejo sem algo desejado.


A Gestalt-terapia, na medida em que aposta e convoca a capacidade criativa do sujeito de assumir sua história e a recriar, convida o sujeito a produzir desvios, mudanças na forma habitual de estar no mundo. Assim, ao invés de afirmarmos um modelo social ideal para a vivência da espontaneidade individual, gostaríamos de finalizar a discussão de hoje com o convite à reflexão. Como nos relacionamos com as expectativas dos outros? Adotamos posturas de coerção ou acolhemos aqueles com quem convivemos em suas singularidades? Temos ousado ser quem somos ou nos ajustado a molduras em busca de segurança?


Referências

Perls, F. S. (1942/2002). Ego, Fome E Agressão: Uma Revisão Da Teoria E Do Método de Freud. São Paulo: Summus Editorial.

Perls, F., Hefferline, R., & Goodman, P. (1951/1997). Gestalt-terapia. São Paulo: Summus.

 

Rafael Cidrão Campos - CRP 11/08944 - Mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR (Tema: Experiência vivida de ansiedade em adolescentes em processo seletivo para ingresso no ensino superior), com Formação em Gestalt-terapia pelo Instituto Gestalt do Ceará - IGC e Graduação em Psicologia pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR, tendo como foco de estudos a área de ansiedade, depressão e insegurança. Atualmente coordena um grupo de estudos com o tema "Segurança e risco" no IGC - Instituto Gestalt do Ceará.

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