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  • Foto do escritorSilverio Karwowski

Por onde anda a angústia?

Atualizado: 11 de jan. de 2021



Essa pergunta se refere especificamente à constatação do desaparecimento da noção de angústia, tanto da linguagem psiquiátrica - oficialmente responsável por diagnosticar a patologia humana, quanto da linguagem quotidiana onde, em decorrência da patologização da existência, o termo ansiedade tem sido prevalente, ocultando sob si a angústia, e seu entendimento como experiência fundante do ser humano.


Na minha prática de consultório, tenho percebido o quanto as vivências comuns (de fim de relacionamento, de dificuldade de atingir referências sociais de sucesso, de constatação da inexistência de um tipo específico de amor, de medo da dependência e outras tantas mais), inerentes à vida humana, tem sido identificadas pelos pacientes como patologias e, senão desse modo, como entendimento de que "está acontecendo algo muito errado comigo". A consequência é a busca por tratamentos, medicamentosos, por coachs, por prescrições de auto-ajuda, por uso abusivo de álcool ou drogas e, na melhor das hipóteses, psicoterapia.


Se tais experiências quotidianas são entendidas como inaceitáveis, os sentimentos intensificados ao se experimentá-las são cada vez mais evitados. Medo, frustração, insegurança, e outras ditas negatividades são evitadas como se fossem conduzir necessariamente à destruição. A fundamentação de todas essas experiências, a angústia, é negada, evitada, transformada em ansiedade: uma experiência pontual carregadas de sintomas que devem ser combatidos para se evitar a vivência patológica da ansiedade.


Querer evitar as experiências negativas da existência é como querer andar na chuva e não se molhar; não sentir a água escorrendo na pele, encharcando as roupas e atrapalhando a visão. A chuva é tão necessária quanto o sol e embora tenham diferentes modos de ação, possuem a mesma função: a manutenção da vida.


Querer evitar as experiências negativas da existência é como querer andar na chuva e não se molhar

Pretendo aqui expor alguns modos de desaparecimento da angústia, em sua correlação com a vivência mais simples e quotidiana, mas também com a atuação do psicoterapeuta, particularmente o Gestalt-terapeuta, objeto de minha atuação como formador de psicoterapeutas.


O desaparecimento da angústia no quotidiano

Atualmente pode-se reconhecer um esforço cultural, às vezes velado, às vezes declarado, para, senão eliminar, pelo menos impor uma evitação fóbica, de toda experiência de negatividade do ser humano, conduzindo a uma orientação existencial que tem sido comumente identificado como imperativo da felicidade.


Todo um aparato midiático e jornalístico tem se estabelecido nessa direção, ajudando a consolidar o pensamento e a vivência da positividade a qualquer custo. Afim de não me demorar nessa condição, vou me referir a apenas três aspectos desse movimento: o mercado como medida do sentimento, o dramático como tragédia, e a rede social como competição, pois entendo que um trabalho de aprofundamento implica em objeto sociológico que foge ao meu escopo e intenção.



Pessoas se divertindo são o parâmetro para medição e busca do que é ser feliz.



Mercado como medida do sentimento. Em referência ao mercado, quero chamar atenção para a crescente associação dos produtos à venda com sentimentos e situações de exclusiva positividade, criando um parâmetro para mensuração da positividade e do prazer. Cada vez mais veículos, bebidas, roupas, imóveis, perfumes e uma infinidade de tangíveis e intangíveis são considerados caminho e medida para experiências de conquista, vitória, sucesso, prazer, poder, virilidade, pertença e segurança, dentre outros. A questão de desaparecimento da angústia, nessa situação, não diz respeito a evocação desses sentimentos na relação com os produtos, mas na instantaneidade e determinismo aí implicados. A mensagem subliminar é que a aquisição se torna tanto um caminho para experiência desses sentimentos positivos quanto um parâmetro de medida social: aqueles que possuem, vivem e são, no sentido preconizado, detentores tanto da vivência como da condição apontada, gerando percepção de instantaneidade - pois basta a aquisição - e de determinismo, pois com a aquisição do bem em questão será necessariamente assim: adquiriu, viveu.


O dramático transformado em tragédia. Em concomitância ao aspecto anteriormente mencionado, produções de imprensa se encarregam de apresentar o drama individual inerente a toda existência humana - perdas, sofrimento, frustração, medo, insegurança, etc. - como tragédia. A ideia de tragédia originária das produções gregas traz em si a compreensão de uma ocorrência ou acontecimento funesto que desperta piedade ou horror, catástrofe e desgraça. Quando posto dessa maneira, mobiliza nos expectadores, ouvintes ou leitores, ao mesmo tempo, sentimentos de piedade e horror, como dito, mas também fascínio e vínculo, justificando assim a ênfase midiática na negatividade. No entanto, uma ênfase não para desenvolver recursos de enfrentamento e familiaridade, mas para prender pelo choque e tornar toda negatividade o fim último de evitação, como se toda experiência negativa seja efetivamente aniquilação.


Produções de imprensa se encarregam de apresentar o drama individual inerente a toda existência humana - perdas, sofrimento, frustração, medo, insegurança, etc. - como tragédia

A rede social como palco da competição. As redes sociais, para além de sua missão notória de interligar pessoas, traz em si, cada vez mais através da imagem, a referência dos modos de ser que confirmam os valores sociais disseminados: vivência do prazer, do ócio como mérito, da beleza conquistada ou visitada como merecimento ou prêmio. As situações dramáticas expostas caem no item anterior, o dramático como tragédia, restando espaço apenas para cenas do imperativo da alegria e da felicidade. Elementos relativos a sentimentos ditos negativos como tristeza, o luto, a frustração, a perda e a insegurança entre outros, recebem lugar da reserva, quando muito do consolo velado, medidos pela quantidade de likes e seguidores que por sua vez alimentam veladamente a ideia de que popularidade é sinônimo de sucesso. Ao mesmo tempo, as imagens de positividade, quase todas sem o mínimo de elaboração ou presença do logos, a linguagem escrita ou falada como fixação de significados, remetem ao estabelecimento de medidas para o modo de ser que deve ser instantaneamente atingido ou superado. As viagens expostas precisam ser cada vez mais glamorosas, as noites cada vez mais completas e suntuosas e assim por diante.


Entendo que essas referencias são suficientes para deixar claro ao leitor o banimento de toda dignidade, necessária para a vivência de toda a negatividade inerente a existência humana, de uma cultura vigente, em torno da alegria, da satisfação e da felicidade. Desse modo, a angústia precisa ser negada, oculta e evitada a qualquer modo. Experiências negativas (inevitáveis, na verdade) são vivenciadas de forma extremada, carregadas de culpa, vergonha, raiva e medo, sendo postas, assim que possível no fundo do baú, no porão, debaixo do tapete, ou qualquer outra metáfora que traduza sua fóbica evitação.


A angústia banida das clinicas psicológicas

A ciência e a cultura se retroalimentam mutuamente, constituindo o campo donde brotam a multiplicidade de pensamentos e impressões sociais, assim como teorias científicas que explicam e mitigam o sofrimento humano.


Observa-se que, sendo a psiquiatria a responsável por afirmar científica e socialmente a vigência da psicopatologia, sua natureza e origem, apresenta nos tratados e manuais o corolário de sua produção que servirá como referência para os psicodiagnósticos e tratamentos daquilo que apresenta como doença mental. Tal é essa condição que, nos DSMs IV e V, retirou o termo angústia de seu arcabouço conceitual e de sua linguagem técnica. Utiliza predominantemente o termo e o conceito ansiedade, que no entendimento de Simonetti, significa a aderência a um conceito correspondente às necessidades de mensuração e universalização, pois é possível medir batimentos cardíacos, taxas respiratórias, sudorese e outros sintomas, submetendo essa medição a padrões de normalidade e de anormalidade. Por conseguinte, as exposição desses pressupostos em artigos de divulgação, em programas jornalísticos ou informativos, se encarregam de alimentar a cultura de banimento da angústia, incentivando buscas de profissionais da clínica psicológica afins com esses princípios cientificistas.


A redução da angústia à ansiedade escamoteia sua existência, tanto no estado de saúde quanto no estado patológico

Para a clínica psicológica, em particular a Gestalt-terapia, a aderência pura e simples a esses entendimentos psiquiátricos implica não apenas no banimento da angústia da clínica gestáltica - enquanto condição pática do ser humano, mas também a redução da complexidade da angústia à ansiedade. Essa redução escamoteia sua existência - tanto no estado de saúde quanto no patológico; nega seu caráter genealógico, desde a constituição do ser humano ao ser homem; e elimina seu caráter não-elementar, pois, sendo ela ontológica, não se trata da presença ou ausência de angústia na existência humana, mas na sua identificação, familiaridade e desenvolvimento de recursos de enfrentamento.


Sendo assim, há necessidade da retomada da angustia - como elemento fundante do ser humano, e como fundamental para a clínica gestáltica. O reconhecimento da angústia como ontológica permite a restituição de situações dramáticas como necessárias e inerentes à vida, portadoras de significados e sentidos que devem ser identificados e incorporados ao modo de ser de cada um.


O papel do Gestalt-terapeuta diante da angústia

A Gestalt-terapia se constitui em uma terapia da relação (contato!) e como tal, pretende auxiliar na identidade dos elementos existenciais e psicológicos com os quais as pessoas se relacionam, contribuindo para identificar sentidos e significações - vigentes ou pretendidos, mas também criar modos de percepção daquilo que evitam, eles mesmos, ao estabelecer essas relações.


A qualidade da relação. Pessoas estão em relação o tempo todo com alguma coisa. As relações se dão como modo de troca e de manutenção da vida, atingindo níveis complexos de interação, cuja base é o sentimento e a significação. No entanto, a qualidade de algumas relações pode dificultar ou impedir que as trocas sejam satisfatórias, não fazendo vir a tona as significações e satisfações inerentes. O Gestalt-terapeuta deve interferir para examinar o modo como as relações se dão, afim de identificar e colocar a disposição do paciente os padrões rígidos de repetição. Assim o paciente pode identificar também o que está evitando.


Promover integração. As experiências pessoais precisam ser vivenciadas com o máximo de inteireza possível, atingindo integração entre as diversas dimensões nelas implicadas. Quando essas dimensões não podem ser acessadas, identificadas, experienciadas, compreendidas e generalizadas, ficam repletas de aspectos em aberto, solicitando que as significações e sentidos se complete. O papel do Gestalt-terapeuta é auxiliar no resgate dessas vivências, propiciando ao paciente o desenvolvimento de recursos para integra-las em si mesmo. Integrar: assimilar as distinções para que sejam vigentes, sem incômodo ou o mínimo de incômodo possível.


Integrar: assimilar as distinções para que sejam vigentes, sem incômodo ou o mínimo de incômodo possível.

Familiaridade com a angústia. Por diversas vezes o termo angústia sequer será mencionado pelo paciente ou pelo terapeuta, muito embora seja esse o objeto permanente no relato e exame das experiências do paciente. Ao Gestalt-terapeuta caberá sua identificação e reconhecimento, propiciando ao paciente a percepção de que as negatividades fazem parte de sua vida, podem e devem existir, sem que signifiquem por princípio nenhuma catástrofe. Ao contrário, o desenvolvimento de recursos de enfrentamento, através de ajustamentos criativos constantes, farão com que as vicissitudes possam ser admitidas e incluídas com o sofrimento necessário, mas apenas como episódios e não como permanência.


No quesito de familiaridade com a angústia, o Gestalt-terapeuta deverá, ele mesmo, estar familiarizado com angústia em sua existência, de modo a não querer fugir dos sentimentos inerentes a suas experiências pessoais, e também não construir artifícios de fuga inconscientes, quando seus pacientes começarem o acesso às suas experiências de angústia.


Outros aspectos poderiam ser acrescentados, aos papeis do Gestalt-terapeuta, sendo que, no entanto, para o propósito da exposição nesse post, considero suficientes para o entendimento de que: a angústia está banida socialmente; sua negação conduz cada vez mais a sua intensificação e possibilidade de tornar-se patológica; é ontológica e precisa ser admitida como tal; as experiências negativas precisam tornar-se integradas à pessoalidade; o Gestalt-terapeuta tem a missão de auxiliar nessa jornada.


Em outros posts essas ideias serão desenvolvidas e complementadas, afim de tornar mais claro algumas posições que podem ter aparecido aqui apenas como embriões.

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