top of page
  • Foto do escritorSilverio Karwowski

Supervisão clínica - para que e para quem

Atualizado: 11 de mai. de 2021

A prática como psicoterapeuta abrange o trabalho com o universo do psiquismo humano e seus incontáveis modos de mostrar o ser humano em sua existência. Não há possibilidade de uma preparação plena, uma formação completa de tal maneira a se estar pronto para o exercício profissional em todas as ocorrências psicopatológicas e saudáveis, em todas as nuances do relacionamento humano que são explícitas em sua maior intimidade e particularidade na psicoterapia.


A supervisão é um processo de orientação ao trabalho do psicoterapeuta iniciante.

Ainda assim, profissionais mais experientes – como diria Jean Clark Juliano, que “estão perdidos há mais tempo” – se propõem a olhar a prática dos iniciantes e examinar, de seu ponto de vista clínico, profissional e pessoal, os casos e atuações expostos, fazendo desse modo não a “super” visão, pois não se trata de nenhum superpoder ou dotação extraordinária, mas do enquadre em modelos de atuação clínica e das necessárias intervenções que requerem, afins com esses modelos adotados.


Embora o psicoterapeuta iniciante possa, segundo sua avaliação e sensação de competência, atender seus pacientes sem supervisão, o risco de insucesso em seus casos clínicos e, portanto, em sua clínica é maior que a aprendizagem lenta, minuciosa, dispendiosa e de auto exposição que a supervisão implica. Na maioria das vezes, o diagnóstico dos motivos quando ocorrem insucessos não será atribuído pelo iniciante à ausência de supervisão, visto que alegações de motivos feitas por parte do paciente, leituras superficiais e não correlatas ao manejo técnico serão predominantes, ainda que como modo de defesa por parte do psicoterapeuta.


Os insucessos podem ser apontados como o abandono prematuro (em poucos meses) da psicoterapia por parte do paciente, afirmações mais ou menos explícitas de que não está sendo ajudado pela psicoterapia, a manutenção de superficialidade nas temáticas abordadas, a escuta terapêutica ao invés de escuta qualificada e psicoterápica, intervenções insuficientes, temerárias ou inadvertidamente iatrogênicas, temáticas repetitivas ou circulares, incapacidade do terapeuta de hermenêutica da existência do paciente, sensação de estar perdido ou não saber o rumo, por parte do psicoterapeuta, dentre diversos outros que poderiam aqui ser mencionados.


O que é o processo de supervisão

'Sabendo-se que, em psicologia, particularmente em psicoterapia, é reconhecida a necessidade do processo de supervisão como um requisito para o início da prática clínica e para o sucesso dos casos clínicos dos terapeutas iniciantes, esse processo começa na faculdade, com os estágios supervisionados e pode se encerrar quando o psicoterapeuta, junto com seu supervisor, entende que está relativamente maduro para a condução dos casos sem supervisão, considerando ainda que poderá retornar sempre que sentir alguma dificuldade ou começar a trabalhar com clientes que não estavam, até então, no espectro da sua formação.


"Embora o psicoterapeuta iniciante possa, segundo sua avaliação e sensação de competência, atender seus pacientes sem supervisão, o risco de insucesso em seus casos clínicos e, portanto, em sua clínica é maior que a aprendizagem lenta, minuciosa, dispendiosa e de auto exposição que a supervisão implica."

Mas como poderia mesmo ser descrita a supervisão? Infelizmente não dispomos de pesquisas suficientes que relatem a impressão dos supervisionandos e supervisores sobre o que consideram ser a supervisão do ponto de vista ontológico, de modo que, além de contar com a literatura já publicada a respeito (muito escassa, por sinal) precisamos contar com reflexões empíricas, bem heurísticas, para considerar o ser da supervisão.

Segundo Boris (2008), embora a supervisão clínica seja um dos elementos mais importantes na formação do psicoterapeuta, pouco se tem publicado ou discutido a esse respeito. Refletir sobre, ainda que do ponto de vista heurístico, pode ser de valia para examinar sua epistemologia, para os psicoterapeutas balizarem sua experiência e para estimular a ousadia da escrita e da revelação em âmbitos temerários e incertos.


O propósito da supervisão é aprender ou aprimorar a aprendizagem de psicoterapia, e os encontros se dão normalmente em pequenos grupos, constituídos por cinco a dez pessoas. À medida que se aproxima de dez membros, o grupo pode perder a possibilidade de exposição de todos os casos, por isso em meu caso, prefiro sempre que possível manter no máximo seis psicoterapeutas por grupo.


A necessidade de compreensão do grupo

Para mim, o grupo de supervisão apresenta a mesma dinâmica de qualquer outro grupo, sendo que a literatura científica apresenta diversas modalidades de entendimento do funcionamento de grupos, cada uma com um propósito e atrelada a uma ou mais teorias específicas. Considero que no Brasil, a melhor publicação sobre psicoterapia de grupo é o Compêndio de psicoterapia de grupo, cuja última edição foi lançada em 1996. Embora se trate de uma publicação antiga, esse trabalho reúne todas as teorias e práticas de grupo, oferecendo um panorama do que é e como era a psicoterapia de grupo até a data de sua publicação. Acredito que fundamentalmente poucas modificações ocorreram da década de 1990 para cá.


Em meu caso, como o propósito do grupo de supervisão não é a psicoterapia, opto por examinar a “dinâmica do grupo” a partir dos temas apresentados pelos psicoterapeutas, os sentidos subjacentes a esses temas e as relações estabelecidas entre os membros do grupo. Um entrecruzamento das dimensões interpessoais, intrapessoais e suprapessoais produz uma leitura suficiente do grupo para que eu possa considerar a temática em questão, seu sentido (o que inclui sua significação e finalidade) e sua contribuição ou impedimento para a realização da tarefa do grupo que nesse caso é o aprimoramento das habilidades de psicoterapeuta. Como o propósito aqui não é examinar o trabalho com grupos, deixo apenas a consideração de como lido com o grupo de supervisão, a fim de clarear melhor para o leitor meu entendimento da dinâmica da supervisão.


É muito comum que os psicoterapeutas iniciantes optem pela supervisão em grupo em função do rateio do valor cobrado pelo supervisor, desconsiderando que terão uma atenção difusa em relação aos seus casos e que aprenderão também e bastante com a apresentação dos casos de seus colegas de supervisão. Quando isso ocorre, é comum o psicoterapeuta se decepcionar, querer abandonar o grupo e, por não conseguir pagar a sessão de supervisão exclusivamente para si, ficar sem supervisão. No meu entender, a participação de grupos de aprendizagem, dentre eles o de supervisão, implica em outras aprendizagens, como o senso de partilha, a profundidade em detrimento da quantidade, a diversidade de olhar, a espera paciente e ciente, a digestão de perspectivas e possibilidades, a convivência com a angústia, dentre outros aspectos não menos importantes.


"Quando estou no papel de supervisor, registrar meus próprios sentimentos e impressões, assim como fantasias e pensamentos, torna-se um caminho para a compreensão e para o entendimento do grupo"

Em situação de grupo, ocorrências consideradas negativas tais como a vergonha e insegurança do psicoterapeuta-aprendiz no momento do seu relato de caso, a falta de tempo para apresentar o caso, ações de intolerância, desrespeito, desentendimento e percepção de falta de diálogo por parte do supervisor se tornarão elementos elucidatórios da dinâmica do grupo e do seu modo de lidar com aspectos conflituosos. Cumpre ao psicoterapeuta seu registro, apontamento e exposição ao grupo como mote para a promoção do crescimento como profissional e como pessoa que se dão, no meu entender, prioritariamente em grupo.


Acho que nunca será suficiente a ênfase na grupalidade em detrimento da individualidade, ensinamento que nossa cultura privatista não propicia e que, por mais que nos identifiquemos, por exemplo, como psicoterapeutas, promotores do crescimento e desenvolvimento humanos, ainda não teremos suficientemente apreendido, se não o executarmos em nossa vivência profissional.


Os sentimentos do supervisor

A partir de um dos princípios da Gestalt-terapia, considerando que o psicoterapeuta é seu principal instrumento. Desse modo, quando estou no papel de supervisor, registrar meus próprios sentimentos e impressões, assim como fantasias e pensamentos, torna-se um caminho para a compreensão e para o entendimento do grupo, seja daquilo que está explícito nas falas verbais e não verbais, seja do que está vigente no campo da dinâmica grupal. A exposição das expectativas e desejos em relação à supervisão, por exemplo, permite ao supervisor não apenas alinhar o que poderá ser atendido, mas também perceber os elementos que, concernentes ao campo, podem contribuir ou impedir a consecução da tarefa do grupo de supervisão: aprimorar a prática clínica de psicoterapia.

Em muitos momentos então, considero válido explicitar para o grupo como estão os meus sentimentos e percepção em relação a ele, da mesma forma que solicito a expressão dos sentimentos deles, a fim de que possamos examinar as implicações desses aspectos com a dinâmica do grupo, as expectativas e desejos, as idealizações e mesmo correlações com casos clínicos em voga.


O processo de supervisão

O atendimento psicoterápico possui pelo menos três dimensões passíveis de serem examinados em supervisão: a pessoa atendida, o psicoterapeuta e a dinâmica da relação entre eles.


No que se refere à pessoa atendida, sua historicidade, o modo como articula e realiza sua existência, as relações que estabelece consigo e com o mundo em suas singularidades e padronizações precisam ser profundamente consideradas. É nessa reflexão que podem ser percebidos os aspectos criativos e também o que pode ser identificado como psicopatologia, em sua origem e suas modalidades de manifestação.

Irrevogavelmente, esses elementos surgirão no relato do paciente sobre sua vida, mas concretamente na relação estabelecida entre ele e seu terapeuta. Os sentimentos do terapeuta, sua percepção, as fantasias e desejos vigentes elucidarão, mais que o terapeuta em si, o modo de ser do paciente. Convidar esses elementos do psicoterapeuta, dar a eles estatuto de importância cabal, olha-los como aspectos humanizantes do psicoterapeuta e reveladores do paciente em questão serão uma das tarefas cruciais da supervisão.


"Investigar minuciosamente o que fez o psicoterapeuta, como fez e para que o fez se constituem em procedimento de auxílio ímpar no desenvolvimento de recursos e habilidades terapêuticas, objetivo último da supervisão clínica."

A compreensão, ação fundamental das psicoterapias compreensivas e que atribuem à significação de mundo a chave de saúde e adoecimento humanos, aparecerá de modos diversos, na maioria das vezes surpreendentes e condutores a uma estratégia psicoterápica singular a ser desenvolvida.


As intervenções do psicoterapeuta, por mais que possam estar alicerçadas na particularidade da existência pessoal do psicoterapeuta, são de algum modo evocadas pelo existir do paciente. Sendo assim, investigar minuciosamente o que fez o psicoterapeuta, como fez e para que o fez se constituem em procedimento de auxílio ímpar no desenvolvimento de recursos e habilidades terapêuticas, objetivo último da supervisão clínica.


Considero que, em última instância, o desenvolvimento das habilidades do psicoterapeuta aponta para a familiaridade com o modos de adoecimento humano, o reconhecimento de suas manifestações nos diversos âmbitos existenciais, inclusive na relação psicoterápica; a ciência da dinâmica propiciada pelos aspectos psicopatológicos em articulação com os aspectos saudáveis, a habilidade para elaboração de estratégias de intervenção e o domínio de modos interventivos concernentes à especificidade de cada paciente.


Dado a amplitude dessas habilidades, torna-se indiscutível o fato de que não se darão em uma única sessão de supervisão, ou mesmo em poucos meses. Cada caso examinado numa sessão de uma hora e meia, leva em média de 45 minutos a uma hora, as vezes mais. Esse tempo revela-se suficiente para se obter profundidade na investigação, a emergência de conclusões e possibilidades, ainda que parciais, mas consistentes. O grupo todo ganha junto com a exposição em questão e a cada passo conclui, como eu entendo invariavelmente, que a existência humana é, ao mesmo tempo bela e trágica. Se é assim constituída, interferir na beleza e tragicidade nunca será simples ou fácil, ao contrário, demanda aprimoramento e desenvolvimentos ininterruptos.

 

Silverio Karwowski - é psicólogo e licenciado em psicologia, mestre em psicologia clínica, psicoterapeuta e especialista em Gestalt-terapia. Atualmente é professor e diretor do IGC - Instituto Gestalt do Ceará, tendo se dedicado a formação de psicoterapeutas há mais de 25 anos.

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page